17 de abril de 2022

Vida que segue

 A partir de agora, se quiserem conhecer os resultados dos meus exercícios literários, acessem o seguinte endereço:

25 de julho de 2021

Estado lastimável

A construção coletiva 

da intolerância

 

A defesa enfática

da hipocrisia

 

A manifestação popular

pela opressão

 

A homenagem solene

à tortura

 

O diálogo aberto

em prol da censura

 

Os critérios técnicos

para o desmanche

 

Com amplo apoio

da minoria


A triste nação

em Estado lastimável

de febris delírios

sadopatrióticos

31 de janeiro de 2021

Quem é que ousa?

E o povo saiu às ruas em festejos

quando as nuvens de tormenta

daquelas bem agourentas

tomaram certos ares benfazejos


A peste enfim regredia

a fome se empaturrava

e a guerra se inebriava

nas farras de noite e dia


Foi quando então se lembraram

que a morte não se rendera

 e, por fim, se perguntaram:


Quem é que ousa brandir o machado

quando o pescoço sobre o cepo

é justamente o do carrasco?

24 de dezembro de 2020

O carbono de que somos feitos

Naqueles tempos, as chamas queimavam a olhos vistos, por dias e noites, por meses a fio

E havia ainda aqueles dispostos a incendiar-se, pôr a mão ao fogo, a fim de descobrir de que combustível eram feitos: madeira grossa, cepo úmido, que fumegaria aos poucos a casca e pronto; ou lenha seca e rachada, que consumiria-se plenamente, às cinzas

Havia sempre novas chamas, aqui e acolá, de propósito ou por descuido. Enquanto o céu, tomado de fagulhas e fuligem, ansiava por novos ventos e por chuva, para que a estiagem e o fogo dessem vez, enfim, a novo período de esperança.

25 de junho de 2020

Pasárgada

O tempo devorou meus sonhos bucólicos.

Pasárgada tornou-se um balneário, repleto de turistas com paus de selfie, lives e hashtags.

Não se faz mais uma refeição decente por menos de 200 patacas, que é quase meio salário dos que ali trabalham; mas que não moram mais ali, pois o aluguel também subiu após a renovação do centro histórico e os polpudos contratos para a temporada.

Agora, os trabalhadores de Pasárgada moram do outro lado do rio, nos manguezais, em palafitas amontoadas e abalroadas. No tempo das monções, a água, a lama e o óleo das embarcações invadem as casas. O rei sempre lamenta muito, mas lamenta enquanto banqueteia-se cercado por seus novos amigos: os grandes empresários que incentivam o turismo, que administram o porto e que movimentam a economia local.

Vou-me embora de Pasárgada, mas não sei se resta para onde ir.

16 de fevereiro de 2020

Estática

Todas as noites, no horário do jornal, sentava na poltrona no meio da sala, ligava o rádio e propositalmente tirava-o de sintonia

Naqueles tempos inconstantes e nebulosos, a estática, um caos ordenado, mensurável, cientificamente explicável, era a única coisa capaz de mantê-lo são

7 de janeiro de 2020

Arquétipos

No palco, o fantoche grita
“eu sou um menino de verdade”
estalando o pé de madeira
sobre as tábuas nobres do palco

Títere e titereiro confundem-se
em uma figura singular e pitoresca
- melodramática

Os fios da trama estão ridiculamente expostos

mas o público simplesmente ignora
e embarca em histórias fantasiosas


Não há ninguém por trás das cortinas,
pois não é mais necessário

O espetáculo criou vida
e segue crescendo
- incontrolável

25 de novembro de 2019

Líquidos

A vida tornou-se
um simulacro

um tour virtual
em 360 graus

pelo museu de Madame Tussaud


onde figuras de cera
enfileiram-se

estampando telas, vitrines
e linhas do tempo


uma horda de manequins maleáveis
inconsistentes

que derretem-se, impotentes

quando expostos ao calor
da realidade

e das paixões febris

14 de agosto de 2019

Antropogravura

No princípio, os exemplares são quase idênticos. Passam todos por um processo padrão: são polidos e lustrados, corrigem-se as imperfeições; se necessário, com auxílio de lixas

Mas o tempo encarrega-se dos entalhes, das aparas e das arestas. Não há moldes que resistam; não há superfície que se mantenha lisa; não há estrutura que se mantenha inabalada. E são as rachaduras que tornam cada composição única; são precisamente as imperfeições que as tornam singulares

Cada obra, um experimento; cada criatura, um criador

13 de agosto de 2019

Desassossego

Um instante
que ressoa

destilando ressacas

na memória intermitente
perturbada

gotejando

num espelho d'água






16 de junho de 2019

Domocracia

Como denunciara Cícero

pro domo sua

por sua casa
por sua família

em causa própria


pelos desvios
pelos atalhos

os meios pelos fins


do feitio dos canalhas
e demagogos

pro domo sua

e ora pro nobis

Obstinada

enquanto conteve

a primavera entre os dentes

passaram-se outonos

14 de janeiro de 2019

Ciclo das águas

O degelo foi lento
gradual

afiadas estalactites
partiram-se liquefeitas

a alva cobertura
desfez-se em pranto

e o fluxo convergente
ganhou corpo, corrente


Em seu percurso sinuoso
as águas passadas

moveram os moinhos
da consciência

remoendo as mágoas


e transbordaram
sobre a terra seca

preparando o solo
para nova safra


enfim, primavera


18 de novembro de 2018

Vale dos Ossos

No período da seca

as copas podres
de árvores mortas
emergem das águas plácidas

e a velha garça
retoma seu posto
inabalada


Mas pouco a pouco
a vida definha

em poças ralas
- espaçadas

os peixes debatem-se
desesperados

presas fáceis


O castigo, porém
logo chega aos pássaros
e também aos mamíferos

não poupa répteis
ou anfíbios

não perdoa sequer os insetos


apenas os vermes refestelam-se


em pouco tempo,
dos brados de outrora

restará apenas o silêncio
- calmaria

13 de outubro de 2018

Matéria Bruta

A coragem dos ignorantes
é o que nos leva adiante


são as asas
com penas coladas

- que nos alçam
aos planos de voo


e os fracassos
pautados pelo absurdo

- que expandem
as fronteiras da razão


Ao estilhaçar delírios
é que se lapidam sonhos

10 de junho de 2018

Transgressão

Despido
diante de olhos desalmados

aquele corpo esfacelado

o corpo não aceito

corpo ofensa


aquele não corpo
banido, proibido
censurado e interditado

Despido
diante de mãos gélidas

aquele corpo mutilado

o corpo ilícito
corpo delito

4 de abril de 2018

Sacrifícios

Seguimos cegamente
como discípulos fervorosos

de deuses insaciáveis


Já não bastam as reses
e a colheita

não há vida
que garanta
- por si só

algum tempo de bonança


As entidades clamam por mais

anseiam por nações
povos
comunidades

e tão logo as recebem
- em diligente oferenda

devoram-nas

arrotam

e exigem mais

4 de março de 2018

Triunfo

Não tenho a voz
embargada por emoções

não grito
não resisto

estou certo da derrota
tanto quanto da impermanência


- tenho em mim
a serenidade dos prostrados


E contento-me com pouco

cultivo revoltas
em fogo brando

e rumino ideias fixas
certezas impassíveis

como nuvens de tormenta
eles passarão

e nós ainda estaremos aqui

sobre as ruínas
- triunfantes

 

 

 

--


1º lugar no Prêmio Poesia Agora - Verão 2020, organizado pela Editora Trevo.

12 de dezembro de 2017

O próximo

Então, antes de morrer, ele sussurrou a um daqueles que o observava, cúmplice:

– Ame a si mesmo como se fosse o próximo.

11 de dezembro de 2017

Mimicry

Altough it sounds the same

one face in the crowd

is the complete
opposite

of one facing the crowd

10 de dezembro de 2017

Penitência em trajes de domingo

Cada qual
com sua queixa

em comum,
apenas o proclamado
- dramatizado

papel de mártir


— Não me deixam entrar
por má vontade!

— Reclamam de tudo
porque me invejam!

— É um complô,
uma estratégia!


Uma miséria de resistência

não durariam uma semana,
sequer um dia

nas vestes apertadas
- sufocantes

do verdadeiro sacrifício

9 de dezembro de 2017

Adestramento

O homem é um animal político

Felizmente, há mulheres dispostas a domestica-los

8 de dezembro de 2017

Perpétuo

Vivia com a cabeça nas nuvens
O corpo definhava, há anos debaixo da terra, mas a memória foi extraída e preservada

7 de dezembro de 2017

Nuvens

Os comentários
e mensagens

dos amigos desavisados

nas fotos sorridentes
dos finados


viver nas nuvens

tornou-se um destino
melancólico

6 de dezembro de 2017

Terminal

Viviam todos nas nuvens.
Quando caia a conexão, ninguém sabia o que fazer com a realidade.

5 de dezembro de 2017

Nuvens e névoas

– O papai foi viver nas nuvens, filho.

–  Mas eu quero ele aqui comigo!

– Não vai dar, filho.

– Não é justo!

– Eu sei que não é... mas uma hora ele cansa daquele celular.

29 de novembro de 2017

Reminiscência

Impassível
inabalável

tornou-se,
enfim

um monumento

um símbolo
de esperança

de novos tempos
que virão

e passarão

- despercebidos

28 de novembro de 2017

Esvoaçando

Precária armação
de bambu

adornada
- sem excessos

com papel de seda


atada a um fio
- de esperança

que subiu aos céus
no final de tarde

27 de novembro de 2017

Regresso

Todos as manhãs, ela pede ajuda para colocar um belo vestido e fazer a maquiagem; Repara que as mãos estão trêmulas e aponta a culpa da ansiedade.

Com toda a elegância que lhe resta, segue para a estação de trem, onde embarca diariamente para a década de quarenta; e aguarda o reencontro com o amado.

26 de novembro de 2017

Confidências

Trago péssimas notícias
para ti, Cecília


Os destinos se perderam

pelos caminhos tortuosos
desse mundo distorcido


As ideias retiraram-se
em meio ao tumulto


E os homens
já não sonham mais

sucumbiram, derrotados
- sob a força dos vermes

19 de novembro de 2017

Ignição

Ao atiçar as primeiras fagulhas, pensava apenas em preparar o terreno

Quando percebeu-se cercado pelo fervor, as chamas já eram incontroláveis

26 de outubro de 2017

Alvorada

No remoto horizonte

um fulgor resplandece
após longa vigília


- Há luz!
anunciam sorridentes
os fatigados combatentes

E fagulhas de esperança
cintilam

nos olhos marejados
dos otimistas


Ao longe
na praça

a céu aberto

as línguas de fogo
devoram

a carne dos iludidos

1 de julho de 2017

Aplicada

Após seis anos cursando medicina, dois na primeira residência, três na segunda e mais quinze atuando no serviço público e sucateado de saúde, sem condições efetivas de salvar vidas; ela precisava de uma injeção de ânimo.
Aflita, prometia a si mesma, durante a aplicação, que esta seria a última.

30 de junho de 2017

Instintos e Instituições

Quando a cidade amanheceu isolada pelo exército, em quarentena; ele já sabia que não seria salvo pela medicina, pela fé ou pelo estado.
Naquele dia, juntou toda munição e comida enlatada que conseguiu carregar e dirigiu-se para um local mais seguro. Os infectados retomariam as ruas ao pôr do sol.

29 de junho de 2017

Se limites

No tribunal, declarou que seus experimentos buscavam avanços para a medicina e para o agronegócio; e que a ciência não podia ser contida!
Mas não soube explicar qual era seu propósito em relação àquelas criaturas híbridas, quimeras repulsivas, acorrentadas no subsolo.

28 de junho de 2017

Militante

Desde pequeno, demonstrou interesse pelas ciências humanas, em especial a medicina e a psicologia.
Após a grande invasão e, em questão de dias, a conquista, usou os conhecimentos adquiridos para reduzir a ansiedade e o estresse no caminho para o abate. Sensibilizado, defendia os direitos humanos.

27 de junho de 2017

Crédito

Primeiro buscou a medicina tradicional; depois, cada um dos tratamentos alternativos.
Também recorreu à fé; em cada uma das religiões e crenças.
Quando veio a cura, não sabia direito a quem agradecer.
Teve que explicar ao doutor:
– É tanto dízimo e oferenda que vou ter que pendurar as consultas.

26 de junho de 2017

Incursão

Acordaram com o barulho.
– Você vai ou eu vou?
Ela se apressou:
– Eu vou!
Destrancou a porta e seguiu de encontro aos ruídos.
Ao deparar-se com aquela cena, disse:
– De novo, meu filho! Não tem mais nada de valor aqui. Larga dessa vida! Já tão comentando na igreja que você é drogado, virou ladrão.

25 de junho de 2017

Sócio

Ele não havia sido um reles ladrão; era o chefe do esquema. Sujeito perspicaz, ardiloso.
Depois que ele chegou, Caronte nunca mais remou; e passou a cobrar cinco moedas por cada viagem: uma para a empresa terceirizada das barcas, uma para si próprio, uma para Hades e duas para o novo patrão.

24 de junho de 2017

Corte

No centro do auditório, aquela senhora permanecia sentada e vendada.
O apresentador perguntou:
– Você solta este... –apontou para o empresário corrupto–... Para prender este aqui? – apontou para o ladrão de galinhas.
Sem muita ponderação, ela gritou:
– Siiim!

23 de junho de 2017

Pureza

Antes de irem à igreja, encontraram-se no lavatório.
A noiva visivelmente nervosa. A avó a acalmou e ajudou a corrigir a maquiagem, apontando o excesso de pó de arroz.
Na cerimônia, quando todos se afligiam, ela comentou comovida:
– Continua a mesma mocinha; sangra o nariz quando fica ansiosa.

22 de junho de 2017

Modernidades

Naquela casa noturna pós-moderna, progressista, sentiu-se meio deslocado.
Até o mictório, rebuscado, ficava em um espaço mais aberto. Mas, apesar de inibido, ele estava apertado.
Quando notou alguém urinando no lavatório, o segurança ponderou: "não vou nem falar nada, esse povo é todo louco".

21 de junho de 2017

Negócio de família

Sempre fora um negócio de família, mas que se adaptou aos tempos.
De início, foi uma discoteca inaugurada pelo avô. Depois, a casa noturna gerenciada pelo pai. No entanto, foi com ele que chegaram os tempos de glória: transformou o palco em altar e realizava cultos de domingo a domingo.

20 de junho de 2017

Restelo

Ludibriado pelo capitão, que prometera levá-lo à aventura em troca de um punhado de moedas, o velho ressentido, vendo-se condenado a morrer trabalhando a terra, como o fizera por toda vida, correu ao terminal de embarque do cais e rogou pragas sobre todos que partiam, já ao longe.

19 de junho de 2017

Descaminhos

Não aguento mais reuniões e aeroportos. Não consigo nem saber onde estou; escritórios e terminais são todos iguais.
Penso em conferir o bilhete, para saber se estou indo ou voltando, mas já não tenho nenhum interesse em ir ou voltar, não por esse caminho.
Quando chamarem meu nome, estarei longe.

18 de junho de 2017

Espreita

Após meses de isolamento naquela estação avançada de pesquisas, aguardavam ansiosos pelo retorno à civilização. Sequer imaginavam que, no terminal de cargas, um passageiro clandestino os espreitava.
Jamais chegariam ao destino planejado.

17 de junho de 2017

Sem cura

No letreiro sobre o para-brisa, lia-se em letras garrafais: terminal.
Uns diziam que era o destino; mas outros cochichavam que era deboche do dono da viação, aparentado do prefeito, que deixava os ônibus caindo aos pedaços.

16 de junho de 2017

Rejeito

Decidido, dirigiu-se ao terminal de autoatendimento.
A fila estava curta; logo entrou na cabine. Marcou na sequência: indolor básico, cremado e lançadas ao mar. Recusou o adicional de morfina e confirmou o débito em conta.
A cidade orgulhava-se do moderno sistema de tratamento de resíduos sólidos.

14 de junho de 2017

Fervor

Em forma de uma língua de fogo, o espírito santo revelava-se e derramava glória sobre os homens, purificando-os.
Galileu recusou a benção.

13 de junho de 2017

Comunicação

Entre arquitetos, engenheiros e operários, havia alemães, japoneses, franceses, ingleses, chineses, indianos, egípcios, marroquinos e outras tantas nacionalidades.
No entanto, nas torres de Dubai, não tinham qualquer problema para se entenderem; todos falavam a língua universal: o dólar.

12 de junho de 2017

Amontoado

Desci do carro cambaleando. Passei a língua pelos dentes, trincados e ásperos. O gosto de sangue era intragável. Senti enjoo.
Juntavam-se à cena os vizinhos curiosos, os funcionários do comércio e o pessoal que saia da igreja.
Tentei sair dali, mas fui contido. Um grito ecoou:
– Assassino!

11 de junho de 2017

Tortura

Ao encontrar uma poça suja, resquício da última chuva, prostrou-se para ao menos molhar a garganta. Mas, antes que pudesse alcançá-la, foi impedido.
Após o puxão, sua algoz apertou mais a coleira e continuou conversando com a amiga:
– Ele adora passear; fica de língua de fora, todo feliz!

10 de junho de 2017

A ilha

O Império almejava, através do embargo econômico, isolar aquela ilha, que dependia do comércio exterior para suprir suas demandas.
A estratégia poderia lograr sucesso, mas a afronta à Rússia tornou a questão mais complicada.
A Inglaterra não se deixou abater. Napoleão, soberbo, acabou derrotado e exilado.

9 de junho de 2017

Alternativa

Ele preferia cães a gatos.
No entanto, após os embargos sobre a carne bovina, por conta da vaca-louca; sobre as aves e suínos, devido às gripes; e também sobre os peixes, saturados de metais pesados; não podia mais se dar ao luxo de ficar escolhendo.

8 de junho de 2017

Liberdade

Em seus devaneios, circulava livremente, sem quaisquer embargos ou ameaças.
Edris era apenas uma pessoa, com os agravantes de ser Curdo e ter nascido na Síria; mas sonhava em ser tratado, por um dia que fosse, como uma nota de cem dólares.

7 de junho de 2017

Porta em porta

No princípio, vendia almanaques e enciclopédias, pesados volumes. Depois vieram os kits multimídia, com tudo aquilo em dez ou quinze CDs.
Ele sabia trechos de cor, para impressionar. Hoje, não recorda nem mesmo o próprio nome.
Há quinze anos na rua, segue batendo de porta em porta; de mãos vazias.

6 de junho de 2017

AI

Adquiriu por anos amplo conhecimento: clássicos da literatura, bibliografias completas, volumes das principais enciclopédias, almanaques de variados temas, notícias, imagens, vídeos, músicas, mapas, dados pessoais...
Mas apenas quando adquiriu consciência, foi que aquilo tudo se tornou um problema.

5 de junho de 2017

Catálogo

Mantinha tudo perfeitamente organizado, todos os atos, fatos e imagens, em almanaques publicados ano a ano, pessoa por pessoa.
Quando se sucedia o ato derradeiro, ele finalizava a edição vigente, reunia a coleção e ia buscar o novo hóspede. Com tantas provas, não havia santo capaz de absolvê-los.

4 de junho de 2017

Desabafo

Foram meses de brigas, a traição, a separação e, por fim, a disputa pela guarda. Aquilo tudo já era demais para a cabeça dele.
Mas foi apenas quando o filho revelou que queria morar com a mãe, que ele desabou em lágrimas e desabafou, arrependido:
– Eu também.

3 de junho de 2017

Insustentável

O divórcio foi traumático.

Após a extenuante disputa judicial, ele, cabisbaixo, precisava escolher com quem ia morar.

Com os pais ou com algum amigo. Não conseguiria se manter sozinho.

2 de junho de 2017

Mate

A disputa pelo poder fez mais algumas vítimas.
Após a queda do rei, as investigações revelaram o responsável pelo golpe de Estado: todos os cheques haviam sido expedidos pelo bispo. Os peões foram apenas inocentes úteis.

1 de junho de 2017

Disputa de egos

Com o tempo, virou tudo uma grande disputa de egos: quem aparecia mais, quem conseguia ir mais longe, quem fazia as maiores loucuras.
Esgotado pelos excessos da rotina frenética, em um breve momento de lucidez, deu um fim a todas aquelas personalidades.

31 de maio de 2017

Financiamento

Com os pagamentos em atraso, a equipe fazendo corpo mole e as derrotas acumulando-se junto às disputas judiciais, o dirigente finalmente encontrou a solução.
Após muito diálogo, conseguiu um novo patrocinador master, para ocupar a vaga deixada pela empreiteira. A crise chegaria ao fim!

30 de maio de 2017

Carmen

A estreia da ópera foi um fracasso. Os críticos apontaram o absurdo daquela protagonista: uma cigana dissimulada e infiel. Diziam que, com aquele exemplo, o que se poderia esperar das mulheres da sociedade? Logo não se poderia mais confiar nelas.
Machado observava tudo de longe; e discordava.

28 de maio de 2017

Novelas de época

As peças, óperas e outros espetáculos eram executados no palco principal do grande teatro municipal; mas ficavam quase sempre em segundo plano.
Os maiores dramas, tragédias e intrigas desenrolavam-se, sob olhares e ouvidos atentos, no foyer e nos amplos corredores.

27 de maio de 2017

Apreciadores das Belas-Artes

No final de 1896, inaugurou-se o Teatro Amazonas.
O responsável pela obra foi aclamado pelo povo na rua, mas desprezado pela elite no interior.
No meio da ópera, alguém gritou:
– É preciso eliminar o negro!
Muitos riram.
Eduardo Ribeiro retirou-se; e só retornou para dar nome à avenida em frente.

26 de maio de 2017

Sangue em Sevilha

Na noite de estreia da ópera de Rossini, sucedeu-se a tragédia. No intervalo, alguém trocou o inofensivo objeto de cena por uma navalha afiada.
O crítico do jornal local, que acordou sobressaltado com o corte brusco, desdenhou da direção a la Tarantino.

25 de maio de 2017

Atualidades

Após o banquete, foram para a sala, esparramar-se no sofá e debater os grandes temas atuais.
Quando reparou na movimentação para tirar a mesa, cuidar das crianças e lavar a louça, interrompeu a conversa com o sogro e os cunhados; os temas já pareciam um tanto ultrapassados.

23 de maio de 2017

Metodologias

Quando o genro e a filha foram embora, a sogra desfez o sorriso, foi para a cozinha e colocou toda a louça do escorredor de volta na pia. Enquanto esfregava novamente os pratos e talheres, dizia para si mesma, indignada:
– De que adianta fazer mal feito? Melhor deixar para quem sabe...

22 de maio de 2017

Traiçoeira

Expôs orgulhoso a sua criação:
– A máquina é infalível! Não tem sentimentos, não se deixa enganar.
O general insistiu, então, que o criador tivesse a honra de testá-la.
As primeiras perguntas foram inofensivas. Mas, quando indagaram se havia vendido o projeto aos inimigos, as agulhas dispararam.

21 de maio de 2017

Brevidade

Estranhei o silêncio na sala.
Ao aproximar-me, ouvi apenas o remoto, mas inconfundível, barulho das teclas.
Quando notou-me à porta, ele questionou:
– Oi, vô! Fiz aqui um poema... como é que imprime?
Ali, diante da máquina de escrever, dei-lhe a primeira lição sobre o quanto a poesia é efêmera.

20 de maio de 2017

Locomotiva

As engrenagens um pouco gastas atritam-se, barulhentas. Enquanto isso, sobre as chamas, a válvula dá voz aguda aos vapores carregados.
Na estação da memória, entre a máquina de lavar e a panela de pressão, embarco nesta viagem às manhãs de domingo, à casa de minha infância; minha raiz-locomotiva.

19 de maio de 2017

Registro

Caminhava ansioso rumo à Capela Sistina, registrando cada passo, cada detalhe.
Ao passar por uma porta, no entanto, um dos seguranças chamou sua atenção e apontou para uma placa: um círculo vermelho e uma tarja sobre uma máquina fotográfica.
Fechou a cara e foi embora. De que adiantaria só ver?

18 de maio de 2017

Desfecho

Isolado em um quarto de hotel, pensou em Ícaro, no sonho e na liberdade. Pensou em da Vinci, nos grandes gênios, nos sucessos e fracassos que o levaram até ali.
Mas logo abaixou a cabeça, cobrindo o rosto com o chapéu, e murmurou:
– A obra da minha vida... uma máquina de guerra.

17 de maio de 2017

Incontrolável

Quando a seca já havia mirrado a vegetação nativa, julgou que era o momento propício para limpar o terreno.
As chamas se espalharam rápido.
Quando viu a raposa, símbolo da esperteza, correndo em direção ao fogo, riu. Mas logo notou que as labaredas não tardariam a chegar até a casa. As crianças.

16 de maio de 2017

Responsável

A primeira caçada era uma grande festa; marcava o início da primavera.
Na alvorada, o rei partiu com a comitiva completa, atrás dos cães, rumo às florestas do norte.
No final da tarde, ele retornou inconsolável. Com o velho arcabuz descompensado, mirou a raposa; mas alvejou o pequeno príncipe.

15 de maio de 2017

Instantânea

Quando queriam saber das novidades do bairro, todos já sabiam a quem recorrer.
Poucos sabiam o nome daquela senhora que vivia varrendo a calçada, por mais que já estivesse limpa. Mas o apelido era famoso: Polaroid, revelava os segredos instantaneamente.

14 de maio de 2017

Segredos

A chefe da cozinha do castelo comentava com a auxiliar sobre uma receita especial, quando o menino que carregava lenha entreouviu apenas uma frase:
– Mas a rainha tem um segredo!
Naquela terra fértil para intrigas, não levou mais de dois meses para um festival de decapitações e mortes na fogueira.

13 de maio de 2017

Confidência

Quando o questionaram se conseguia guardar segredos, não imaginou que seria tão complicado.
Apesar do desconforto, não podia recusar o pedido. Seguiu em frente, passo a passo, receoso.
O momento mais crítico, no entanto, foi quando, após a revista das celas, precisou retirar e devolver tudo.

11 de maio de 2017

Condenado

Quando sentiu o calor - e a fumaça começou a entrar pelo vão da porta, pensou resignado: devia ter ido de escada.

10 de maio de 2017

Reservado

Ele ficava indignado: tudo era restrito, exclusivo ou reservado.
De escolas a universidades, assentos de ônibus a mesas de restaurante; tudo tinha limite. Até o elevador era "social".
E ainda ousavam lhe dizer que era uma terra de oportunidades... Subir na vida? Só se fosse de escada.

9 de maio de 2017

Degraus

A vida oferecia dois caminhos.
Mas, naqueles tempos de sedentarismo, a concorrência tornou-se desleal: a escada para o céu estava às moscas, enquanto a rodovia para o inferno tinha até congestionamento.

8 de maio de 2017

Acolhimento

No Sul do país, os vizinhos mais fervorosos mantinham a tradição de preparar uma recepção calorosa para aqueles que consideravam desajustados, anormais.
Na primeira noite após a mudança, surpreendiam-nos com a cruz em chamas no quintal, os discursos de ódio; e as tochas atiradas pelas janelas.

7 de maio de 2017

Simbolismo

Naqueles tempos sombrios, o cardeal fazia repetidas vezes o sinal da cruz; com ferro em brasas, em cada um dos hereges.

6 de maio de 2017

Trindade

Precisava atravessar apenas uma fronteira para fugir da guerra. Mas, para escapar à fome, ainda restaria meio mundo.
Para evitar problemas, trazia consigo a cruz, a estrela e a lua crescente. Mas nunca sabia ao certo, ao deparar-se com um posto de controle, qual dos amuletos traria melhor sorte.

5 de maio de 2017

Interesses

Na época da multiplicação e da fartura, estava sempre cercado de gente.
No entanto, quando veio a crise, teve que carregar a cruz sozinho.
Passada a tormenta, recuperou-se e ascendeu em questão de dias. Mas, após tanta decepção, não teve dúvidas: ordenou que escrevessem um novo testamento.

4 de maio de 2017

Serenado

Era um sujeito debochado, levava a vida na flauta.
Um dia, no entanto, mexeu com a pessoa errada. Levou uma surra e ficou desconcertado; sobrou só o pó da gaita.
No dia seguinte, lembrou-se dos conselhos do pai, que batia sempre na mesma tecla: ficou pianinho.

3 de maio de 2017

Fascínio

Não era bom caçador; tinha que se contentar com sobras.
Até o dia em que restaram asas de abutre. A carne era pouca, a fome, muita. Roeu ossos e, quando chupou o tutano, um som singular ecoou ao redor da fogueira.
Tinha em mãos a primeira flauta do mundo; e todos passaram a segui-lo com oferendas.

2 de maio de 2017

Penitência

Caminhava com dificuldade e carregava, além da idade avançada, cicatrizes e chagas abertas. Mas suportava as dores intensas e mantinha-se fiel; um verdadeiro mártir.

Ao final do dia, desferia nas costas dezenas de chicotadas. O confessionário não seria seguro para expurgar seus segredos e pecados.

1 de maio de 2017

Retalhos

Quando viu pela primeira vez o globo terrestre, dividido apenas entre água e terra, ficou um tanto confuso.

O que eram, afinal, todas aquelas linhas tracejadas que via nos mapas?

Cicatrizes, talvez... não sabia ao certo como encontrar um sentido para tantas divisórias.

30 de abril de 2017

Cicatrizes

Os meninos da rua exibiam as cicatrizes como medalhas por bravura:

– Essa aqui foi de skate.

– Cortei numa pedra no fundo do rio.

– Pulando o muro pra pegar a bola.

– Explorando a construção abandonada.

No entanto, quando perguntaram ao novato onde havia conseguido a dele, ele soluçou:

– Meu pai...

29 de abril de 2017

Normal

Era assustadoramente comum: não havia nenhum traço marcante; uma cicatriz que fosse, olhos faiscantes ou muito opacos, nariz torto, um tique, trejeito; nem ao menos um tom de voz ou respiração brusca que levantassem suspeitas.

Havia apenas uma maldade incerta, dessas que se encontra em qualquer um.

28 de abril de 2017

Evidências

Usava manga comprida sobre as marcas nos braços.

Os hematomas no rosto, escondia com maquiagem.

A echarpe encobria os ferimentos no pescoço.

Sabia bem o que não se podia disfarçar; e fez o corte de uma bochecha a outra.

A cicatriz o acompanharia pelo resto da vida. Em cada espelho, ele a veria.

27 de abril de 2017

Ilusionista

Embaralhava os elementos, tentando manter a atenção da plateia.

Em um instante exibia, no outro escondia. Explicava, mas logo depois confundia.

Ao final, cada um dizia ter visto algo diferente. Algumas vezes até discutiam.

O truque era simples; não tinha qualquer magia: era só misturar palavras.

26 de abril de 2017

Fulgor

Aproximou-se lentamente, dividido entre o medo e o fascínio.

Os olhos cintilantes refletiam aquela magia. Estendeu a mão para tocá-la; mas logo recuou, urrando de dor.

Da dor passou à ira; e lançou-se ao ataque, até extinguir as chamas a pauladas. Ainda não estava pronto para aquela novidade.

25 de abril de 2017

Frágil

Ela era muito sensível e não conseguiu conter-se após os gritos do marido.

No entanto, logo se recompôs; ainda tinha que limpar a casa toda, enterrar o corpo, queimar o lixo e agir como se nada tivesse acontecido.

24 de abril de 2017

Esgotamento

Ela chorava baixinho, receosa, quando se aproximou da irmã mais velha e confidenciou o motivo do pranto. Após uma frase e meia, a irmã exclamou, sem qualquer ternura:

– Mas é só um pouco de sangue! E vai vir mais, todo mês!

Os gritos de desespero foram ouvidos por toda a casa.

23 de abril de 2017

O papel que lhe cabe

Durante a noite, cobria-se com o sangue quente que escorria do jornal popular.

Apesar do barulho dos tiros, zunindo a cada página, dormia tranquilamente; torcendo para não virar uma notinha de rodapé.

22 de abril de 2017

Vestígios

O fim do relacionamento foi um tanto conturbado.

Passou horas lavando a roupa suja; mas o sangue não saia.

21 de abril de 2017

Sitiado

Vi-me cercado por um bando de palavras ariscas, indomáveis.

Tentei dominá-las, contê-las em gaiolas ou jaulas; mas fracassei.

Acordei com um pé-de-vento espalhando os rascunhos pela sala; num farfalhar de páginas em branco.

20 de abril de 2017

Suicida

De súbito, ela atirou-se, deixando-me em silente desespero.

Eu queria gritar, mas não podia. Eu não sabia...

A palavra maldita, suicida, estava na ponta da língua.

19 de abril de 2017

Termodinâmica

Em meio à discussão, ele tentava, em vão, medir as palavras.

Não tinha noção alguma de física.

Mal sabia que palavra é matéria-viva; que, com muito calor, se dilata.

18 de abril de 2017

Simpatia

Ela era um pouco rude, indelicada, e tinha péssimas manias. Não tinha sequer um traço de simpatia.

Vivia botando palavras na boca dos outros. Depois costurava os lábios e os enterrava no quintal.

17 de abril de 2017

16 de abril de 2017

Língua solta

Mantiveram-me amordaçado, não queriam me dar a palavra.

Após sinal do chefe, liberto, dei-lhe a minha palavra; e ele, então, pediu para ter uma palavrinha comigo, em reservado.

Os capangas titubearam, mas ele cuspiu palavra de ordem!

Quando ficamos a sós, arranquei dele as últimas palavras.

15 de abril de 2017

Dupla jornada

Andava sempre com aquela bolsa de couro recheada com alicate, bisturi, lixa, tesoura e pinças.

Passava o dia extraindo unhas encravadas, removendo peles, lixando calos, cortando daqui e puxando dali. Durante a noite, o serviço era bem parecido, mas o patrão era um agiota.

Tratava calos e calotes.

14 de abril de 2017

Domínio

Vivia pisando em ovos. Sentia-se mal, angustiada; e desequilibrava-se sobre os saltos, com receio de que se rompessem.

Mas pagavam bem.

13 de abril de 2017

Impacto

O impacto foi tão violento que o plasma nuclear jorrou em golfadas para além da superfície. A crosta rachada, esfarelada, dispersou-se em estilhaços, disparados a grande velocidade.

O comandante não celebrou a vitória. O senador tentou alentá-lo:

– Não se constrói um Império sem quebrar ovos.

12 de abril de 2017

Caroço

Eu andava tenso e, durante o banho, senti um nódulo nas costas. Esgotado, tomei um analgésico e dormi. No outro dia, havia um calombo no local; e incomodava, doía muito! No desespero, cutuquei com uma faca. A pele rasgou e saiu dali um ovo; dentro dele, o pequeno demônio já gritava:

– Queime tudo!

11 de abril de 2017

Eclosão

Após os tremores, rachaduras rasgaram a capital. Enquanto prédios iam ao chão e aquela imensa criatura brotava dali, todos corriam desesperados.

Sob um viaduto, três pessoas buscaram abrigo. Quando se reconheceram, riram. Um deles comentou:

– Vocês também se conhecem? Esta cidade é mesmo um ovo.

10 de abril de 2017

Pregador

Sobre um caixote de madeira, no meio da praça, vociferava, eloquente, cortando o vento com as mãos. Em seus discursos inflamados, trazia à tona, das profundezas, os maus presságios de um mundo pestilento.

Era um soldado fanático, idealista, travando guerra de trincheira contra inimigos invisíveis.

8 de abril de 2017

Crônica

Engolia oito pílulas por dia: uma para acordar; uma para comer; uma para sair de casa; uma para manter o foco no trabalho; uma antes e uma depois da academia; uma para gozar; e outra para dormir.

Entupido de remédios, ainda sentia-se mal. O que tinha não era doença, era sina; e a vida não tem cura.

7 de abril de 2017

Colateral

O remédio da pressão piorou a circulação; o da circulação complicou o coração; o do coração corroeu o estômago; o do estômago deu pedra no rim; sobrecarga do fígado; dor nas juntas.

E por fim, naquele equilíbrio tão frágil, de folha de outono em galho seco, um vento gelado e a pneumonia o levaram.

6 de abril de 2017

Lucidez

Sonhar com a guerra, naqueles tempos em que só se conhecia a paz, era como dar à luz os horrores das batalhas entre os homens.

Ao acordar, desesperada, contraiu-se, como se tentasse conter aquilo tudo no mundo das ideias, e suplicou: que a Grande Mãe não permita nunca que as mulheres percam o poder!

5 de abril de 2017

Referência

No calor da discussão, antes de virar as costas, disse que encontraria milhares iguais a ela.

A profecia cumpriu-se. Desde então, em cada mulher que encontra, há alguma coisa que é dela.

4 de abril de 2017

Estilhaços

Após libertar-se daquela relação, fez da mudança um ritual de passagem.

Ao abrir a última caixa e deparar-se com o veleiro aprisionado na garrafa de vidro, não teve quaisquer dúvidas. O fundo da garrafa cedeu nas primeiras pancadas; e, enfim, o vento soprou a favor, com promessas de novos rumos.

3 de abril de 2017

O beijo

Aquele beijo foi tão intenso que permaneceria cravejado na memória até o último suspiro.

Depois daquele momento, ele sabia, no entanto, que se tratava de uma questão de horas, talvez dias. A máfia não perdoa.

2 de abril de 2017

Epidêmica

Em meio à discussão, sentenciou, com veemência, que homossexualismo era doença

Inflamada, a amiga surpreendeu-a com um beijo

Horas depois, já era impossível conter a febre

17 de fevereiro de 2017

Caixinha

Naquele aniversário, ganhei de presente uma caixinha quadrada. Fiquei decepcionada, emburrada.

Então, minha avó aproximou-se, encaixou um pedaço de metal em um canto e começou a girar.

Quando ouvi os primeiros estalos, abri bem os olhos. Quando vi a bailarina, enchi-os de lágrimas.

16 de fevereiro de 2017

Insípido

Quando viu aquela mão desconhecida estendida, oferecendo um pequeno quadrado colorido, achou que fosse um chiclete, algum doce; mas não tinha gosto.

Horas depois, no momento em que as gotas da chuva em cores vivas começaram a explodir em notas musicais na areia movediça da praia, tudo fez sentido.

15 de fevereiro de 2017

Famintos

Não me esqueço daqueles olhos desconfiados, de quem já viu e sofreu muita maldade. Apesar da fome, demorou a aproximar-se, arisco. E, quando veio, olhou-me nos olhos, através deles; como se buscasse desvendar minhas intenções.

Somente após comer, quando caiu no sono, é que voltou a ser criança.

14 de fevereiro de 2017

Acolhida

Aqueles que o cercavam ordenaram que a calasse, mantivesse encarcerada e, se necessário, matasse, para que nunca mais se manifestasse.

Subversivo, manteve-a escondida, sob seu amparo.

Todos os dias, seguia ao trabalho encenando severidades. Ao retornar ao lar, deixava a criança divertir-se, livre.

13 de fevereiro de 2017

Coice

Ele era criança ainda, não tinha mais de seis anos. Ouviu o barulho e, quando se aproximou do cercado dos cavalos bravos, viu a marca da ferradura no rosto disforme; e o sangue que começava a verter.

Nunca mais esqueceu aquela cena. Ainda ouve na memória aquele grunhido, um ronco bestial de dor.

12 de fevereiro de 2017

Causos

Seu Jorge, ferreiro de renome, retornava ao lar quando um rapaz austero, meio coxo, abordou-lhe em uma esquina:

– O senhor aí, forjador, cuja fama atravessa fronteiras, já fez ferradura para bode?

– Bode? Bode não usa essas coisa... Pra que diabos eu faria isso?

– A princípio, apenas para um...

11 de fevereiro de 2017

Sororidade

No ambiente de trabalho, era uma exímia domadora de ignorantes. Não se afetava pelos burburinhos entre os subordinados: dominadora, mal-comida, entre outros ainda piores.

Apesar disso, desabou em lágrimas, de empatia e raiva, quando viu o próprio filho, em frente ao colégio, humilhando uma colega.

10 de fevereiro de 2017

Mais valia

O circo precisava de novas atrações; mas tudo que tinha a oferecer era moradia precária, comida e água.

Foi então que o domador teve uma ideia. Espalhou pela floresta centenas de cartazes: "O trabalho dignifica o animal! Troque a instabilidade da selva pela segurança do lar e garantia de ocupação".

9 de fevereiro de 2017

Quimeras

Quando enfim despertou, percebeu-se cercado por quimeras.

Cada ser tinha os traços, a figura humana. No entanto, para quem reparasse nos detalhes, ficava evidente a verdade: eram monstros, com apenas alguns resquícios de humanidade.

De súbito, levou as mãos sobre o rosto; e respirou aliviado.

8 de fevereiro de 2017

Autodidata

Ele era autodidata; e extremamente dedicado. Cada vez que se interessava por um tema, arregaçava as mangas, botava as mãos na massa e ia a fundo, destrinchando a matéria e dissecando os conteúdos.

Foi preso quando estava prestes a publicar um tratado revolucionário sobre anatomia humana.

7 de fevereiro de 2017

Refreado

Até aquele dia, havia sempre andado na linha, contido. Mas a dura realidade, que lhe foi apresentada em uma sequência penosa de violência, impunidade e impotência, foi mais do que o suficiente para desequilibrá-lo.

Descarrilou, como um trem desgovernado; e seguiu sem rumo, à margem de tudo.

6 de fevereiro de 2017

Retorno

Quando os trens partiram lotados, todos ficaram receosos.

Mas foi apenas quando voltaram, vazios e insaciados, que o desespero abateu-se sobre todos que ali estavam, confinados.

5 de fevereiro de 2017

Monstros

Ao partir para o Cabo das Tormentas, estava certo de que encontraria monstros hediondos nas águas bravas.

Quando, por fim, aportou no Novo Mundo, com os porões abarrotados de escravos, deparou-se com águas plácidas, imaculadas, que refletiam com perfeição a brutalidade irreconhecível daquele rosto.

4 de fevereiro de 2017

Rebentar

Encoberto pela noite de nuvens densas, mantinha o cabo do punhal sobre o peito, junto à respiração em ritmo lento, mas firme. Quando o sujeito se aproximava, um clarão irrompeu as trevas.

O lampejo do raio revelou o cenário armado; e o rebentar do trovão abafou o grito de desespero.

3 de fevereiro de 2017

Aflição

Ela passava o tempo suspirando, deitada, encolhida; com os joelhos dobrados sobre o peito comprimido.

Para desafogar a ansiedade, contava os dias e horas, em marcas feitas à unha, na parede da solitária.

2 de fevereiro de 2017

Detalhista

Metódico, beirando o compulsivo, havia forrado o chão e os móveis daquele cômodo com plástico e jornal.

Ingênuo, sem nenhuma prática, não suspeitava que o sangue respingaria nas paredes; e até mesmo no teto.

1 de fevereiro de 2017

Destino trançado

Quando a vizinha deu a ideia de desfazer-se das madeixas e dispôs-se a acompanhá-la ao salão, não imaginou que houvesse, por trás dos sorrisos, má intenção.

Ao deparar-se com as velas negras ao redor de sua própria foto, com a boca costurada em trança de cabelo, revisou trêmula o dia anterior.

31 de janeiro de 2017

Desfiados

Quando passaram lado a lado, na entrada do mercado, não se esbarraram por detalhe. Na fila do caixa, os olhares não se cruzaram e, na saída, nem ao menos repararam um no outro.

Enquanto isso, na casa das Moiras, o gato endiabrado distraía-se com os fios da vida, desfazendo as tranças do destino.

30 de janeiro de 2017

Demanda

Naqueles tempos sombrios, de ignorância desmedida, não faltava ocupação para diabo algum

Cada mente vazia, oficina diligente, demandava barbaridades

29 de janeiro de 2017

Ocupação

– Estudado eu não sou, não, seu moço. O saber que eu tenho é da vida e de exercer ofícios; Nunca me faltou ocupação, pois que sempre tive disposição de começar no rés do chão e ir subindo. Umas hora a gente cansa de tanto recomeço, mas a vida segue, né? O senhor não tem um serviço para mim aí, não?

28 de janeiro de 2017

Dançando com tubarões

Com os investimentos certos, criou súbitas fortunas e atraiu grandes investidores. No entanto, quando veio a crise, perdeu muito dinheiro, das pessoas erradas.

Para quem almejava ser tubarão, foi trágico, no final das contas, virar comida para peixe.

27 de janeiro de 2017

Espólio

Ele era um livro aberto; e os mais próximos não demoravam a desvendar suas intenções.

Quando perceberam que pretendia deixar seu reino de herança aos desvalidos e necessitados, irromperam em cólera. Para evitar o disparate, entregaram-no à morte e forjaram um novo testamento.

26 de janeiro de 2017

Ciúmes

E o livro de cabeceira, que costumava ser bastante reservado, ficou de orelhas em pé ao descobrir, meio que por acaso, que no cômodo ao lado– bem ali, cruzando o corredor– havia longas prateleiras, repletas de histórias já vividas

25 de janeiro de 2017

Sobressalto

Ao cair da tarde, a maré subiu e algumas ondas bravias vieram lamber-lhe os pés. Acordou assustado, levantou-se de um salto e correu atrás do chinelo, arrebatado pelo mar.

Quando finalmente resgatou os dois pares, virou-se para a praia vazia e, só então, lembrou-se: o pequeno tinha vindo junto.

24 de janeiro de 2017

Olhos de Ressaca

Desde o enterro de Escobar, não me acode imagem capaz de dizer o que foram aqueles olhos de Bento; o que foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. Traziam não sei que fluido inconstante e grave, uma força de arrasar o que estivesse adiante, como maré brava que se levanta contra a praia.

23 de janeiro de 2017

Despachado

O juiz de plantão estava embriagado quando trouxeram o meliante sob custódia, requerendo que despachasse com prontidão e definisse a pena.

Ele urinou sonoramente, de porta aberta. Retornou à sala pitando um cigarro e, sem burocracia, expediu a sentença:

– Esse aí é reincidente, bota no "microondas".

22 de janeiro de 2017

Virtuoso

Naquela época, cada qual era, ao mesmo tempo, intendente, juiz e carrasco. Cada homem carregava em si o peso da lei.

Uns tantos envergavam, com tamanha responsabilidade. Mas não o reverendo Samuel Parris, cidadão virtuoso, dedicado a sua divina missão: livrar de todo mal o vilarejo de Salem.

21 de janeiro de 2017

Língua(s)

O amigo de além-mar contava extasiado sobre um passeio de gaivotas. Ela, inebriada, imaginava-o segurando fios com aves nas pontas, de carona até um cometa.

Quando ele mencionou o esforço para pedalar de volta à margem, ela retomou a razão; relembrou que se tratava de uma língua só, mas bifurcada.

20 de janeiro de 2017

Contra o vento

Era um exímio empinador de pipas, profissional; e tinha uma para cada ocasião: morcego azul para polícia; baratinha preta para caveirão; de biquinho vermelha para milícia; carrapeta roxa para facção rival; e gaivota branca para cessar-fogo.

No entanto, ficou obsoleto com a chegada do whatsapp.

19 de janeiro de 2017

Ciclos do Fogo

Passou quatro anos apagando incêndios, mas conseguiu auditar as contas e pôs a casa em ordem. Deixou até dinheiro em caixa, para mudar de fato aquele pobre povoado. No entanto, não conseguiu reeleger-se.

Ainda hoje, quando passa pela praça, desconsolado, o povo desdenha:

– Esse aí só fez lenha!

18 de janeiro de 2017

Locomotiva

Estufava o peito, soltando vapor pelas ventas, ao maquinar discursos separatistas. Apontava o fardo injusto que aquela região, locomotiva do país, estava condenada a carregar caso não se libertasse

Nunca citava, talvez por esquecimento, de onde vinha toda a lenha para manter o fogo aceso

17 de janeiro de 2017

Desolada

Os tratores insinuavam-se
com correntes nos entremeios

sobre o colo desnudo da Terra


Logo estaria toda lisinha

como se dizia adequado
às moças comportadas

- reclusas e recatadas

daqueles tempos

16 de janeiro de 2017

Desfecho

O espetáculo teve um encerramento súbito e dramático

O brilho do giroflex, em azul e vermelho, atravessava as janelas e incidia sobre a fumaça de narguile que ainda preenchia o espaço. No centro do palco, os sete véus– empapados de sangue, cobriam o corpo

15 de janeiro de 2017

Posfácio

Após meses de atraso, com a corda no pescoço por ter descumprido o contrato, enfim compôs o encerramento perfeito

Assim que finalizou a obra, enviou-a para os editores e partiu com pressa: tinha um destino trágico a cumprir

14 de janeiro de 2017

Plenitude

Naquela noite insólita

o eclipse lunar
foi simbólico


o encerramento da noite
sobre si mesma

o pôr da lua
escuridão plena


um momento propício
- sem sombras ou dúvidas

aos maus presságios

13 de janeiro de 2017

Apropriado

A semente brotou, criou raízes e folhas. De início, era um pouco incômodo, mas logo habituou-se.

As flores tornaram o fardo um pouco mais leve, mas logo percebeu que a questão era mais grave do que imaginava: a dúvida estava gerando frutos; que não tardariam a infestar-lhe as ideias.

12 de janeiro de 2017

Dúvida

Depois que se afastou da corporação, demorou algum tempo para habituar-se.

Não havendo hierarquia, restava a dúvida: como saber quem está certo e quem está errado?

11 de janeiro de 2017

Coragem

Admirava o avô e sua presença no palco. Um dia perguntou-lhe:
– Vô, você acha que eu tenho alma de artista?
A resposta veio rápida, como um bote certeiro:
– Alma é um vestido de seda que os covardes usam como se fosse armadura.
Ele ficou para sempre na dúvida: era mais incentivo ou descrença?

10 de janeiro de 2017

Alma

Logo após a primeira mordida, percebeu-se, enfim, plena.
Estava consciente de seu próprio corpo, do universo de possibilidades que a cercava, de tudo.

Deixou de ser um objeto, submissa; agora, teria seus próprios sonhos e devaneios, teria alma.

9 de janeiro de 2017

7 de janeiro de 2017

Vorazes

Eram, de fato
criaturas peculiares

de hábitos incomuns


alimentavam-se do caos
de todo tipo de fontes

e após pouco tempo
- sem qualquer processamento

expeliam palavras de ordem

6 de janeiro de 2017

Prática da Relatividade

Desde sempre
e até onde a vista alcança

tempo
e espaço

são
foram
serão

em qualquer direção
- ou sentido

relativos


quanto menos espaço
você ocupa

mais tempo sobra

(e vice-versa)

5 de janeiro de 2017

Fluidos

Estavam certos os profetas
que ninguém levou a sério

o progresso nos trouxe
a uma nova era:

são tempos líquidos

- talvez pastosos

o chorume acumulado
de milênios passados

30 de julho de 2016

Desperdício

Lançava-as ao vento
- ao acaso

sem qualquer aprestamento
ou lapidação


palavra ocas
- vazias e fúteis

palavras à toa
- desperdiçadas


E mesmo que com empenho

se amontoassem mil
- ou mais

em um fardo volumoso


não dava o peso de uma imagem

um lampejo que fosse

 

 

 

--

 

Selecionada no 2º Prêmio Literário Afeigraf 2020, organizado pela Editora Scortecci

17 de junho de 2016

Sepultadas

Sementes ressecadas

sob camadas de folhas secas

entre as raízes
- retorcidas

de árvores primitivas


tal qual palavras esquecidas

entre as páginas rotas
- emboloradas

dos dicionários de línguas mortas

15 de junho de 2016

Sentidos

Perspectivas distorcidas

em visões turbulentas
- de destinos entrelaçados

leio o futuro em borras

de garrafas de vodka

12 de junho de 2016

Ao vento

Cultivo poemas
como sementes

- de plantas desconhecidas


como promessas tácitas

- de jardins secretos

que jamais vislumbrarei

2 de junho de 2016

Devaneios

Entre tantos amores cortantes

afiados
- dilacerantes

o que ela mais queria

em sonhos
- expectativas

era encontrar

um amor cego

27 de abril de 2016

Mitologia

Mantenha os ouvidos atentos

caso contrário

os gritos nos porões
serão abafados

por canalhas ao microfone


a história é uma farsa

que se repete
- por mil vezes

até que se torne tragédia

17 de janeiro de 2016

Brio

Estava decidido a fazer justiça com as próprias mãos. No entanto, frente a frente com o coronel, as mãos tremiam e o suor corria em bicas, ziguezagueando pelas rugas da testa; Diante da possibilidade de tornar-se um criminoso, hesitou.

Quando ele abaixou a arma- e a sarcástica certeza da impunidade se apresentou diante dele em um sorriso de canto de boca-, lembrou-se apenas das palavras do avô, que havia lutado muito pela honra da família e pela propriedade daquelas terras: "caráter é um vestido de seda que os covardes usam como se fosse armadura".

Foram 5 tiros, todos no alvo. Foi levado dali arrebentado a pancadas e algemado, mas de cabeça erguida.

30 de novembro de 2015

Asséptico

Mantinham-se
acondicionados

seguros
- estáveis

em ambiente estéril

onde nenhuma novidade
ou conceito

ideia ou teoria

seria capaz de reproduzir-se


Reflexos

Intolerância
é autoflagelo

repreensão da culpa
- em corpos alheios

apedrejamento
de espelhos


é a cobra
- ensandecida

que devora
o próprio rabo

29 de novembro de 2015

Etimologia I

"Diga-se de paisagem": expressão utilizada para referir-se ao momento em que você faz um comentário breve, superficial e ambíguo o suficiente para que seu interlocutor julgue que você concorda com ele; porque a cara de paisagem não foi o bastante para encerrar o assunto.

24 de novembro de 2015

Contraposto

O cão de guarda ladra
rosna
- ameaça

e não permite
que ninguém invada

sua minúscula jaula


22 de novembro de 2015

21 de novembro de 2015

Fatídico

Não importa quão alto
é o voo do pássaro

ou quão longínquas
são as terras avistadas


um dia ele haverá
de reunir-se a sua sombra
- pousar em definitivo

e aquelas asas
aqueles olhos
- e tudo aquilo que viram

serão devorados por formigas

9 de novembro de 2015

Impregnada

O tronco centenário
- imperturbável

de uma árvore
que, por dentro

está se abrindo
em poros

oca


E cede lugar
- aos poucos

a novos ecossistemas


6 de novembro de 2015

Propagação

No rádio, as ondas curtas, de alta frequência, são as que alcançam maiores distâncias de propagação.

Na estrutura social também parece funcionar mais ou menos do mesmo jeito: o raciocínio curto, que tem altíssima frequência, propaga-se vertiginosamente

5 de novembro de 2015

4 de novembro de 2015

Armistício

Após ter, enfim

assinado
o tratado

de paz
- interior


ficou vetado
- ainda que tentado

de cruzar as fronteiras
estabelecidas

- conforme o acordo

na área limite

entre os caminhos
percorridos

e as águas
passadas

3 de novembro de 2015

Molde

Já conheço
todos os rostos

não um a um

em detalhes
específicos

mas o mosaico
de moldes

as fórmulas
- matrizes

o barro essencial

a origem

e o sopro

2 de novembro de 2015

Debandada

Ideias são bichos soltos
- ariscas

que se debandam
apressadas


num farfalhar
de páginas

- em branco

31 de agosto de 2015

Fenômeno

Podia durar
alguns minutos
ou segundos

só o tempo para respirar

um desafogo
dessa guerra

um eclipse total

da Terra

28 de agosto de 2015

Vazio

Pesquisou em todo canto
- virou a internet do avesso

mas não encontrou
pra comprar

ou sequer uma receita
- dica ou gambiarra
pra fazer em casa

E recorreu, então
aos classificados:

"Procura-se enchimento
para fundo de travesseiro"

27 de agosto de 2015

Revide

Encaminha-se às fronteiras
descomunal exército

de homens, mulheres e crianças
famintos e desesperados

expulsos de suas terras
- geograficamente estratégicas


As formigas
pisoteadas

a subirem pelas pernas



26 de agosto de 2015

Contenda

Na beira da trilha, encoberto pelo mato descuidado, mantinha o cutelo sobre o peito, acompanhando a respiração em ritmo lento, mas firme. Ele estava decidido, pois sabia que era o certo, a única coisa a se fazer, e que só ele podia dar cabo do sujeito e do caso.

Nuvens espessas cobriam o céu e a chuva anunciada caiu junto com a noite. Não se via mais de alguns palmos diante dos olhos quando lá adiante, na curva do rio, uma lamparina rompeu a escuridão a trote lento, formando uma auréola no arredor da silhueta única, fundida, de montaria e sujeito. Só podia ser ele.

A respiração acelerou-se, ofegante, dando vida e movimento a empunhadura do cutelo, sólida, de madeira de lei. Lentamente, espreitando sobre a vegetação, levantou-se e caminhou, sobre o lamaçal e as poças que se formavam, em direção à trilha. A lamparina continuava aproximando-se, contínua e lentamente. A respiração, a duras penas, estava contida. Daquela distância, já era possível notar na silhueta um chapéu e uma foice. A mão do cutelo, para não tremer, permanecia recostada ao peito. O momento se aproximava.

Naquele instante crítico, pesou-lhe a indecisão: atacar de frente, correndo o risco de um deslize potencialmente fatal, ou dar-lhe a volta e investir pelas costas, vingativo e certeiro? Mas não teve tempo de arrazoar estratégias. Quando estavam a pouco mais de dez metros de distância, eis que um raio irrompeu as trevas. O lampejo não durou mais do que o suficiente para refletir o cenário armado.

Após o clarão, a montaria arisca relinchou, empinou e escoiceou. A lamparina espatifou-se no chão. Um grito alucinado se fez ouvir junto ao trovão que rebentava. E o sangue, emanando em golfadas, lavou o chão junto à chuva.

25 de agosto de 2015

Vetores

Fundamentalismo
é doença da braba

que anuvia a vista
e debilita as ideias


E os hospedeiros
nem se dão conta

que carregam no bucho
- inoculado

o ovo da serpente


24 de agosto de 2015

Abstrações

Não me interessam
as concretudes

saber do teu dia
ou das notícias


O que me instiga
é intangível

que tipo de seres
habitam teus sonhos?

quais são as sensações
que percorrem teu corpo?

que tipo de ideias

- absurdas e insensatas

te assaltam
em plena rua?




21 de agosto de 2015

Intimidades

O casório foi formidável, uma grande festa, mas durou muito pouco
O Discurso e a Prática logo separaram-se

Dizem as más línguas que a Coerência foi pivô da separação. Tinha um caso com a amiga

20 de agosto de 2015

Resíduos

Abro mão de saber tudo sobre tudo aquilo que mastigaram, cuspiram e botaram no meu prato

Prefiro seguir adiante, olhando em volta - e para cima, para saber quem pôs mesa; e de onde vem os alimentos

19 de agosto de 2015

18 de agosto de 2015

Expectadores

Heróis de fato
ainda vivos

são poucos
- raríssimos

E aqueles que resistem
estão sempre em risco

pois a torcida
sempre tendeu

- por instinto
ou por malícia

a ter mais simpatia
pelos leões

17 de agosto de 2015

Abstinência

Relações superficiais
- descartáveis

como adesivos
- de nicotina

pra suprir
a tua ausência

14 de agosto de 2015

Guerrilha

Sem verbas
- sucateadas

as escolas
- desoladas

viram cenários de guerra

com muros altos
e arame farpado

paredes sem reboco
e grades de ferro
- para todo lado


E a educação
acossada

- esquecida

vira um ato subversivo

13 de agosto de 2015

Golpe

E muita gente foi às ruas
reclamar, com veemência

que foram vítimas
-  ludibriadas

e todas elas relatam
que não sabem do que se trata

- e que nunca assinaram

o tal contrato social

12 de agosto de 2015

Anêmico

Um estado febril

que tenta
- a qualquer custo

expelir tudo aquilo
que lhe parece indigesto


Enquanto os vermes de sempre
agarram-se com força

permanecerão intactos
- quase despercebidos

nas entranhas do sistema

11 de agosto de 2015

Opressão

Não foi por falta de aviso

mas por excesso
de censuras

- de corretivos
e reprimendas

gaiolas invisíveis

convites abertos
à fuga




10 de agosto de 2015

Regressão

A perspectiva de futuro anda tão ruim que logo mais vai ser ofensa dizer que uma pessoa está à frente de seu tempo

7 de agosto de 2015

Submissão

Somos a sétima maior economia do mundo, mesmo estando de joelhos desde que o Brasil é Brasil

Imagine só se a gente pudesse se erguer...

6 de agosto de 2015

Mártires

O estresse é uma reação individual a um modelo de sociedade que não se consegue suportar

Dia após dia, aos milhares, AVCs ou infartos, colapsos e mortes súbitas engrossam as fileiras de mártires das causas perdidas






5 de agosto de 2015

Passadismo II

Naqueles tempos
havia respeito

cabeças baixas
e olhos estáticos

- mirando o chão

E ai de quem ousasse